“Tempos houve em que voar era uma festa. Mesmo.
O ponto alto da festa era o voo base anual em Boeing 707, uma sessão que durava algumas quatro horas durante as quais pilotos e instrutores faziam tudo aquilo que nem em sonhos podiam fazer nos voos de linha com passageiros. Ah, e fazia-se com the real thing e não em simulador como hoje acontece. Fazer isto em simulador é assim a modos que comer um bife de soja: é saudável, alimenta, não engorda mas não sabe a coisa nenhuma. Bah…
O voo base era, bem entendido, uma verificação de proficiência e conhecimentos mas servia também para explorar limites e aumentar a confiança dos pilotos e mecânicos de voo (mais tarde Operadores de Sistemas) em si próprios e no avião.
Era, como disse, uma festa.
Vocês não vão acreditar mas por vezes até levávamos convidados:
– “Queres vir dar umas voltas de avião, pá?” e lá trazíamos connosco um amigo, um primo, uma sobrinha. Claro que os infelizes nem sequer sonhavam no que se iam meter mas isso também fazia parte do divertimento.
A TAP cedia um B707 com os tanques de combustível bem fornecidos e lá íamos Alentejo fora até Faro, uma espécie de playground para este tipo de atividades. O aeroporto tinha pouco tráfego (saudades…) e os controladores de serviço até agradeciam a companhia.
Simulavam-se todas as avarias possíveis e imaginárias: falhas de motor, hidráulicos, comandos de voo, sistema elétrico, descidas de emergência e sei lá mais o quê. Tudo demasiado monótono e vulgar. Aquilo já todos nós fazíamos de olhos fechados no simulador. Chato.
O melhor vinha depois.
Dutch roll, por exemplo. Vocês sabem o que é um avião de grandes dimensões a funcionar como um baloiço? Sim, só que em vez de baloiçar para trás e para a frente baloiçava da esquerda para a direita e vice versa. Uma graça. Havia quem enjoasse, especialmente os convidados. Era muito bem feito, pensavam que vinham em turismo ou quê?
Seguia-se a pièce de résistance. Era resistência mesmo, coisa para homens de barba rija (sorry, ladies): desligavam-se os sistemas hidráulicos que alimentavam os comandos de voo e toca a voar o avião com cabos e roldanas como faziam os Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras dos princípios do século XX. Manual Reversion”, assim lhe chamava o fabricante. Uma delícia. Por vezes ambos os pilotos tinham que aplicar força máxima nas respetivas control wheels (no mesmo sentido, por favor) para que a coisa se dignasse mexer. Uma inércia gigantesca e um peso do outro mundo, mas fazia-se.
Para terminar nada melhor que um par de stunts, manobras completamente fora do programa mas de que toda a gente gostava pela sua criatividade. Sim, cada instrutor tinha as suas “especialidades” e nós simples mortais só tínhamos que fazer e aprender. Depressa, se possível.
A esteira, por exemplo:
– Agora vamos voar sobre o mar com o rádio altímetro a ler zero.
– A zero???
– Sim, é muito fácil. O rádio altímetro está calibrado para ler zero quando o trem de aterragem principal toca no solo, certo?
– Certo, mas…
– Como temos o trem recolhido quer dizer que temos dois ou três metros a nosso favor, percebes?
– Dois ou três metros? Isso tudo???
Dizia quem estava na praia que o avião parecia uma lancha tal a esteira que levantava. Grande espetáculo!
Até que chegávamos ao número final, também super criativo. O instrutor pegava nos comandos e levava o B707 a mil pés de altitude até à vertical da cabeceira da pista 29 de Faro. Depois virava-se para o copiloto, eu neste caso, e ordenava:
– Agora aterra.
– Aterro??? (o homem está maluco, pensava eu muito baixinho)
Toca a largar as latas todas (trem de aterragem, flaps, speed brakes o que houvesse) e picar em direção ao solo que nem um Stuka. Depois “arredondava-se” e já está. Ainda sobrava pista. Não muita, mas sobrava.
Fantásticos pilotos, os meus mestres. Uma geração de ouro que nunca será suficientemente enaltecida. Eram de facto os melhores pilotos do mundo, como os portugueses tanto gostavam de dizer. Não sei se eram mas para mim foram e continuarão a ser os melhores entre todos.
Obrigado”
Artigo de opinião da autoria: O Aviador, Comandante José Correia Guedes.